24/03/2011
CONTOS DE TERROR
A FEIRA
Enquanto embrulhava alguns dentes de alho em um papel grosso e sujo, a feirante sentiu uma forte dor na barriga. Não era uma dor qualquer. Era como se todas as suas entranhas estivessem se remoendo, como se houvesse algo ali dentro mexendo nelas, puxando-as, rasgando-as. A sensação grotesca percorreu cada centímetro de seu corpo, fazendo suas pernas tremer intensamente. Mas ela agüentou.
Voltou o rosto para o chefe carrancudo, que estava um pouco afastado, atendendo outra cliente. A pele espessa de anos de luta e o grosso bigode sujo de restos de feira não disfarçavam a atitude viril, mas rude, do homem. Não iria lhe pedir um descanso; com ele não havia cansaço, nem doença, nem pausa. Ele exigia trabalho o tempo todo, para que viesse a recompensa financeira.
Ela apoiou os braços no balcão de frutas, fechou os olhos e respirou fundo. A cliente perguntou se estava tudo bem. A feirantecontraiu os dedos, enquanto esquecia a dor, e forçou um sorriso. Não, não estava tudo bem, mas iria ficar. A cliente pagou pelos dentes de alho e se foi.
Ela viu um homem obeso e desengonçado se aproximar, para ver as frutas, mas não olhou para ele. Recuou um pouco, porque a dor voltou com ainda mais força. Encostou-se na mureta, enquanto o homem escolhia as frutas que compraria.
O homem tateou fruta por fruta, como se fossem pedaços humanos, sentindo o calor, a consistência de cada uma, sentindo um prazer selvagem só em passar os dedos sobre elas. A feirante sentiu uma angústia ácida lhe subir o pescoço, porém resistiu à vontade de jogar para fora o café da manhã. O embrulho dentro do estômago piorou, e ela começou a ver o mundo girar. Estava acontecendo algo muito errado. Ela tinha que fazer parar.
O cliente obeso perguntou o preço de algumas uvas e pediu licença para provar. A moça balançou o braço, indicando que não tinha problema, e assistiu a o homem levar duas daquelas frutas sujas à boca.
Enquanto ele mastigava as uvas em êxtase, ela quase podia ver os micróbios das mãos sujas que colhiam as frutas, das caixas onde eram transportadas, dos balcões onde eram expostas, saltitando de um dente a outro e sendo deglutidos.
A feirante caiu de joelhos, puxando consigo uma das caixas de tomates, e alguns se espatifaram. Agora, não mais conseguiu evitar que o vômito corresse sua garganta e fosse lançado ao chão. Quando parou, começou a tossir, inebriada em suas próprias dores, que não diminuíram. Colocou os braços sobre o ventre globoso e começou a choramingar. O cliente esticou o pescoço para observar melhor aquela cena e, depois de fazer uma feição de asca, aproveitou para roubar mais duas uvas.
O patrão se voltou, ao perceber que todos olhavam enojados para sua barraca. Viu a moça caída e não entendeu o que estava se passando. Reclamou duas vezes, mas a não resposta dela o preocupou. Ele se abaixou e puxou o rosto dela, para encará-lo. Os olhos dela estavam encovados, os lábios estavam ressecados e sujos.
“Que está havendo?” repetiu ele.
“Passei mal… Mas vou ficar melhor” ela respondeu.
“Não demore. Os clientes estão se acumulando. E vá se limpar antes de atendê-los”
O patrão bigodudo se afastou, para ver a cliente que antes atendia. Ela continuou no chão, sentindo um espasmo fortíssimo na barriga. Entreabriu as pernas, enquanto sentia a pressão aumentar, e começou a fazer força para expulsar. Apertou os dedos contra o chão, enquanto seu corpo expelia de si o que cuidadosamente continha.
A sensação foi de alívio quando a pequena criança caiu no meio da poça de tomate e vômito, em silêncio. Não chorou, e pouco se movimentou. A feirante rapidamente enrolou a cria em um saco de papel grosso, como fazia com as cebolas, e tratou de se afastar dali, para que não os notassem. Nem mesmo cortou o cordão umbilical.
Nada contara ao chefe sobre a gravidez, e apenas dizia que estava engordando.
Não queria ser demitida por causa disso. Precisava do emprego, para se manter, para comer.
Parou diante de um tanque, onde poderia se lavar. Com uma pedra, golpeou o cortão umbilical, até que ele se rasgou de forma abrupta, cuspindo um pouco de sangue. Puxou lentamente o cordão umbilical, até vir a carne avermelhada da placenta, de dentro de seu útero. A criança continuava enrolada no embrulho de papel, pouco se movendo.
Ela tampouco tinha condições de sustentar outra pessoa, além de si. Não se importou sequer em ver se era menino ou menina. Caminhou para uma lata de lixo que havia a um canto e ali mesmo soltou o embrulho e o resto de placenta, tampando com cuidado, para protegê-los do sol. Lavou o rosto e o corpo no tanque, zonza, com a perna trêmula. Tinha que voltar ao trabalho, antes que a fila de clientes da feira se tornasse ainda maior.
Fim
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